Para a História do Desporto e dos Desportistas

Composição sobre a entrevista

O futebol apareceu em Portugal no ano de 1884. Lisboa jamais pensara na existência desse jogo, cuja origem é reclamada por muitos. Estávamos na época do Passeio Público — A nossa Avenida da Liberdade — onde os rapazes, nos momentos de folga, lançavam olhares românticos às meninas ainda mais românticas, de cabeças emolduradas por fofos bandós e encimadas por chapéus que eram catedrais de plumas, e usavam vestidos de cintura apertada e ampla «tournure». Lisboa passeava de trem — cerimoniosamente. As bailarinas de S. Carlos apaixonavam os fidalgos, que consumiam o tempo entre elas e as toiradas.
As senhoras elegantes jogavam o «diávolo», e a Corte reunia-se uma vez por outra, nas caçadas.
Do futebol haveria, apenas, uma ideia distante, vinda da Inglaterra, onde o jogo entusiasmava o povo e ganhava a simpatia das classes privilegiadas.
A primeira bola chegada a Portugal, em 1884, foi como um grito de vitória — da vitória do futebol. Guilherme Pinto Basto, estudante em Inglaterra, trouxe-a da velha Albion, como uma jóia rara…

Extracto dum texto publicado no Livro Comemorativo das Bodas de Ouro da Associação de Futebol de Lisboa 1910-1960.

A entrevista a Guilherme Pinto Basto

Entrevista
de
Monteiro Poças

Num dia de Verão, em 1888, desembarcaram em Lisboa, vindos de Inglaterra, onde estavam frequentando o «Downside College», dois rapazes portugueses: os irmãos Eduardo e Frederico Pinto Basto. O facto, aparentemente de uma importância que não ultrapassaria o ambiente das secções mundanas dos jornais da época, tem contudo, para nós desportistas um significado especial porque, numa das numerosas «valises» dos jovens estudantes, entre livros escolares, peças de roupa e romances policiais, vinha uma bola de futebol — a primeira bola de futebol que entrou em Portugal…
E, não será difícil adivinhar o motivo que levou os irmãos Pinto Basto a incluirem na sua bagagem o «inofensivo» balão de couro:

Educados em Inglaterra, habituados ao jogo, então, como hoje preferido pelos desportistas daquele país, os nossos compatriotas deixaram-se seduzir pelo desejo de «transplantarem» para Portugal o popularíssimo «foot-ball association»… Asim , os seus conhecimentos da mecanica do jogo e o seu entusiasmo pelo emocionante desporto ajudaram a introduzir em Portugal uma modalidade que, alguns anos mais tarde, ocupava já uma situação invejável, pela sua expansão e constitui actualmente uma força vigorosa e indestrutível — uma força que ninguém pode desconhecer ou menosprezar…

O primeiro estádio português

Uma vez em Portugal, Eduardo e Frederico Pinto Basto trataram de aliciar adeptos para o novo jogo… E, o primeiro companheiro que se lhes deparou foi, naturalmente, seu irmão Guilherme, mais velho do que eles e que, dois anos antes estivera, também, na Grã-Bretanha, completando a sua educação.

Pouco a pouco, parentes e amigos foram «contaminados» e, em Setembro, durante as férias passadas numa quinta que a família ainda possui em Belas, preparou-se o primeiro encontro de futebol que se efectuou em Portugal…

Mas ouçamos o sr. Guilherme Pinto Basto — o prestigioso desportista que, ainda há dias, apesar dos seus 83 anos, se prontificou a ir ao Estádio Nacional, dar o «pontapé de saída» num encontro que serviu para iniciar a actividade do Grupo Desportivo da sua antiga casa comercial…

Guilherme Pinto Basto, com cativante simplicidade, fornecera-nos os dados de que nos servimos para abrir esta curiosa entrevista. Em tom de conversa sem rebuscar termos ou procurar frases, contava-nos afinal, a saborosa história da introdução do futebol em Portugal…

E, a nosso pedido, o sr. Guilherme Pinto Basto — único sobrevivente dos três antigos alunos do «Downside College» — relatou-nos o primeiro jogo em que tomou parte:

— Os meus irmãos não descansaram, enquanto não arranjaram dois «teams», para se disputar um encontro de futebol… Em Belas, estava também, a família do marquês de Borba e foi, precisamente, num pátio que existia na casa desse amigo de meu pai — o pátio do Bonjardim — que em Setembro de 1888, se efectuou o tão ansiado desafio, com a colaboração, até, de meu pai e do marquês de Borba!

Pormenores da «histórica» partida não os reteve a memória, apesar de tudo previlegiada, dos sr. Guilherme Pinto Basto…

— Só procurando elementos, nos meus papéis velhos.

E logo acrescenta:

De Belas fui para Cascais onde, no mês seguinte — Outubro, portanto — se disputaram por minha iniciativa, nos terrenos da parada, vários jogos de futebol… Recordo alguns dos meus companheiros: Aires de Ornelas, João Bergaro, Jorge Figueira, Francisco Alte, Francisco Figueira, Salvador da França, Manuel Salema, Salvador Asseca, Pedro Sabugal, Hugo O’Neill… e tantos, tantos mais…

A evocação da sua mocidade distante não faz desaparecer o sorriso confiante, optimista, do glorioso desportista que temos na nossa frente; antes, a lembrança de tais acontecimentos parece iluminar o seu espírito, que não envelhece nesta evocativa digressão pelo passado…

Um desafio Internacional no Campo Pequeno

O famoso desportista prossegue na sua interessante narrativa salpicada, aqui e ali, de um comentário gracioso ou de curiosos esclarecimentos:

— No Inverno de 1889, já se jogava futebol em Lisboa, no largo do Campo Pequeno, onde é hoje a Praça de touros. Foi aí que, em 22 de Janeiro defrontámos um «team» de Ingleses como pode ver por esta notícia…

Ei-la, na sua grafia original, para não perder o sabor nem o perfume do passado:

«Effectua-se hoje no Campo Pequeno um ensaio para o grande «match» de Foot-Ball que à uma hora da tarde de terça-feira ali se deve realizar entre ingleses e portugueses. O Foot-Ball é um dos mais interessantes jogos ingleses que ultimamente muito se tem desenvolvido entre nós. O «match» de terça-feira promete ser animadíssimo. No grupo dos inglezes, vêem-se os nomes do capitão Thompson, de R. Watton, J. Morsden, C. Cok, J. Thompson, C. Anderson, H. Palmella, R. Constance, W. Fraser e de E. Brigg; no dos portugueses do de: Eduardo Romero, Affonso Villar,Augusto Moller, Henrique Villar, Duarte Pinto Coelho, Simão Redondo, João Bergaro, Guilherme Ferreira Pinto Basto. Difficil será apostar por uns ou por outros, tão distinctos são os sympáthicos competidores, a quem o nosso high life vae dar uma deliciosa tarde porque o seu rendez-vous na terça-feira deve ser no Campo Pequeno.

O conhecido desportista Armando de Freitas, funcionário superior da Casa Pinto Basto e presidente da assembleia-geral do Lisboa Ginásio Clube que assistia à interessante entrevista comentou:

— Mais ou menos um Portugal-Inglaterra em miniatura…

— Recorda-se qual o resultado desse jogo — perguntamos ao sr. Pinto Basto. Resposta pronta:

— Sei que vencemos mas não posso dizer-lhe por quantos… Compreende, isto passou-se, há, quase sessenta anos…

Acrescentamos nós:

— No dia em que esta entrevista for publicada, ter-se-ão completado, precisamente, cinquenta e nove anos, sobre essa exibição.

O ténis e a caça — os dois desportos favoritos

Formara-se no nosso espírito a ideia de que o sr. Guilherme Pinto Basto fora um praticante e adepto fervoroso do futebol, dedicando a sua atenção exclusivamente, a este desporto.

Recebemos, porém, a prova de que laborávamos em erro, quando o nosso amável interlocutor nos disse:

— Os meus irmãos gostavam mais do futebol do que eu… a minha predilecção ia, sobretudo, para o ténis — de que cheguei a ser campeão — e para a caça…

— Mas jogou futebol durante muitos anos?

— Na verdade até 1894, data em que, joguei pela última vez, tomei parte em muitos encontros, ocupando sempre o posto de «goal-keeper».

E, a confirmar, modestamente, a sua afirmação:

— Não gosto de o dizer, mas tinha um certo jeito para o lugar…

Prosseguindo na sua curiosa evocação, o nosso ilustre interlocutor recorda a sua última exibição, feita no Porto por sinal no jogo que abriu, a série já extensa, dos encontros Porto-Lisboa:

— Foi um grande jogo, muito correcto e contra excelentes adversários…

O sr. Guilherme Pinto Basto talvez, cansado de falar no passado, termina este amontoado de recordações com um desabafo:

— Nunca supus que o futebol português, nascido de um entretenimento para meia dúzia de rapazes alcançasse tão grande expansão e popularidade! Sinto-me satisfeito, por ter contribuido para a sua introdução no nosso país…

Ainda uma pergunta:

— Apesar de afastado dos campos de futebol, continuou a acompanhar o movimento desportivo?

— Embora tivesse abandonado o futebol, continuei, de facto a dedicar muita atenção a este magnifico e espectacular desporto, como simples espectador. Mais tarde, meu filho, Eduardo Luís, teve uma obra curiosa no C. I. F., e eu, compreensivelmente não me afastei dos assuntos que se relacionavam com este clube. Ultimamente, por amável deferência dos organismos competentes, tenho recebido convites para os jogos internacionais que se disputam no Estádio Nacional.

E o sr. Guilherme Pinto Basto encerrou assim a entrevista:

— A ideia dos meus empregados, levando-me a inaugurar as actividades do seu grupo desportivo, encheu-me de jubilo e comoveu-me sinceramente!…

Compreende… tantos anos passados não foi sem uma pontinha de emoção que voltei a pisar um campo de futebol!…

Em 1964 Filipe Gameiro Pereira promove a memória do acontecimento.

Aproveitando a visita a Portugal do Presidente da FIFA na altura, Sir Stanley Rous, e na sua presença, com a anuência da família Empis, proprietária da Quinta do Bonjardim e com a participação do Clube Desportivo de Belas, é colocada uma placa sobre o “jogo de futebol familiar” realizado no belíssimo pátio de entrada da Quinta.

História do Futebol em Portugal – Placa Comemorativa
História do Futebol em Portugal – Pátio da bela Quinta do Bonjardim

Nesse mesmo ano de 1888 e com a participação dos irmãos Pinto Basto e amigos realizaram-se vários encontros de futebol e “ensaios” públicos em Cascais e no Campo Pequeno que estão documentados em várias publicações.

Publicações consultadas

  • “Bodas de Ouro da Associação de Futebol de Lisboa” (1910-1960) – Setembro de 1960 *
  • “Os 50 Anos da F.P.F.” – Edição da Federação Portuguesa de Futebol *
  • “100 Anos de Futebol” – Associação de Futebol de Lisboa (Setembro 2010)
  • “Cascais Aqui Nasceu o Futebol em Portugal” – Edição da Câmara Municipal de Cascais (2004)

(*) Publicações do espólio de Filipe Gameiro Pereira

Nota Final

Conhecendo o espírito de desportista de Filipe Gameiro Pereira revejo neste trabalho a sua visão despretensiosa sobre o Futebol apenas o movendo o registo histórico sobre o desporto, longe de “campeonatos” ou disputas secundárias sobre o assunto.

Jaime Pereira
Nota: As fotos apresentadas são de minha autoria.
Contei ainda com a colaboração de Miguel Leiria Pereira na montagem do artigo da entrevista a Guilherme Pinto Basto.

OBS: Os textos estão escritos no português da altura e outros actuais não obedecem ao Novo Acordo Ortográfico.